Em entrevista publicada no
último domingo no jornal O Estado de S. Paulo, a cineasta Estela Renner,
diretora do documentário Muito Além do Peso , abordou a epidemia de obesidade
no Brasil e no mundo, em especial a obesidade infantil.
O filme mostra como as crianças adotam seus
hábitos alimentares, muitas vezes influenciadas pelos apelos do marketing e da
propaganda. O vídeo, realizado pela Maria Farinha Filmes, já foi visto por 1,5
milhão de pessoas.
Veja, a seguir, a
entrevista concedida à repórter Mônica Manir, do jornal O Estado de S. Paulo:
Vocês acompanharam o que
aconteceu com as crianças que aparecem no filme? Chegamos a fazer algumas
visitas, demos alguns telefonemas. Infelizmente a maioria das crianças ganhou
mais peso. Com uma delas a gente interferiu, conseguiu uma nutricionista
voluntária que fosse até sua cidade, de difícil acesso. Mas só esses meninos
terem participado do filme não fez com que suas realidades mudassem. Abriu o
caminho para uma conversa, eles ficaram populares na época do lançamento, mas
não é uma mudança fácil.
Nessas realidades, a TV
estava muito presente. Isso fica evidente no filme. Imagino que numa segunda
versão vocês teriam de destacar computadores e celulares, não? A criança
brasileira ainda é a que mais assiste a televisão no mundo, mais que os
americanos. Dá uma média de cinco horas por dia. E hoje a gente não tem só a
televisão. Tem o computador, o videogame, os tablets, os celulares. São muitas
telas. Um estudo que eu queria ter colocado no filme, mas acabei deixando de
fora, mostra como antigamente as crianças de 2, 3, 4 anos se desenhavam com os
braços muito compridos, como um Menino Maluquinho. Hoje elas se desenham com os
braços curtos, porque mal utilizam os braços e as pernas. Elas utilizam os
dedos.
Então daqui a pouco vão se
desenhar com dedos enormes? Sim, com dedões. Acho que a gente precisa aumentar
a cultura do estímulo a brincar, a brincar como coisa urgente e séria.
Mas as crianças podem
entender que estão brincando quando mexem no computador, no celular, no tablet.
Eles podem entender que sim. Mas eu falo de brincar usando o corpo, o irmão, o
amigo, a areia, o sol, o mar, o vento, o espaço, usando cair, usando levantar.
Muitos pais temem pela
segurança dos filhos nesse brincar solto. Temos muito menos ruas de lazer que
na nossa época. A rua era o nosso quintal. Hoje é pauta da escola falar de
quintal como se fosse uma ficção. Sim, é perigoso deixar a criança na rua sem
supervisão. O que estou sugerindo é que se diminua o tempo de tela, que se dê
uma caixa de papelão para a criança, ou não se dê nada. De uma forma genérica,
as crianças precisam do ócio, do tédio, para criar. O que os pais têm
dificuldade para entender é que, ao deixar o filho sozinho na frente da TV,
isso não quer dizer que ele esteja seguro.
Por que não? Quando você
deixa seu filho sem sua presença para ajudá-lo a digerir tudo o que está vendo,
você está deixando seu filho com estranhos. As pessoas da tela estão falando
com os seus filhos. Existe uma comunicação mercadológicadirigida a eles, de
comunicadores que estudaram nas melhores universidades. Eles não só estimulam a
venda de produtos para crianças, entre eles alimentos engordativos, como tentam
convencer os filhos a pedir aos pais que comprem produtos para adultos: carros,
geladeiras... Sim, a obesidade é multifatorial. Mas, sem dúvida, o excesso de
telas está associado à obesidade infantil.
Entre as medidas de
prevenção da obesidade propostas pelo governo está o investimento em academias
de saúde e espaços públicos com aparelhos para exercícios. Tudo dirigido ao
adulto. O que tem sido feito para a criança nesse sentido? Acho que muito
pouco. Com 200 horas de filmagem Brasil afora, deu para perceber que as
crianças não sabem andar de bicicleta. Claro! Onde elas vão pedalar? Quanto de
área livre elas têm disponível? Além disso, para a criança aprender a andar de
bicicleta o pai precisa ter um automóvel que a leve ao parque. Se não tiver
bicicleta, tem de pegar fila e pagar por uma. Também tem que ir num horário
decente porque corre o risco de perder o filho no meio da multidão. Outro dado
é este: muitas crianças dizem que a aula de educação física fica só na teoria e
é oferecida somente a partir de determinado ano. Não tem nos primeiros anos de
vida.
Por que a educação física
perdeu importância no currículo? Não sei dizer exatamente, mas um professor de
educação física do Rio, Marco Santoro, que entrevistei depois de filmar Corpo e
Movimento, me falou da herança militar na escola. Tem uma coisa de andar de
mãozinha para trás, de não cair, não sofrer acidente, não correr, não fazer
barulho. Não se educa nem se cria mais a criança com largueza.
O Ministério da Saúde
afirmou que, só em 2013, o programa Saúde na Escola beneficiou 18 milhões de
crianças e adolescentes pesando e medindo todos os alunos e encaminhando aqueles
que estavam acima do peso. O que mais o ambiente escolar pode fazer para
combater a obesidade? Em primeiro lugar, se a cantina vende refrigerante,
hambúrguer e salgadinho, que mensagem a escola está passando para as crianças?
Que autoriza aquilo. Em segundo lugar, se a criança se alimenta três vezes por
dia ou mais, e pro resto da vida, ela tem de ter aula de educação alimentar no
currículo. Não basta uma palestra. Ématemática, português, educação alimentar.
O poder público também poderia atuar de forma mais direta. A Prefeitura de São
Paulo, por exemplo, está lançando um prêmio chamado Educação além do Prato
inclusive inspirado no filme , que deve premiar escolas com o trabalho mais
interessante junto às merendeiras. Quer receitas mais saudáveis. Precisa ver se
é uma atividade pontual ou curricular. Outra coisa: sabe aquele bolinho que
aparece no filme e fazia um ano e meio que continuava inteiro? A Prefeitura
assistiu ao documentário, entrou em contato com o fornecedor e disse que só
voltaria a comprar o bolinho da sua empresa quando ele estragasse. O fornecedor
p assou um ano reformulando o produto e agora chegou a uma receita melhorada.
Por que o governo não faz
uma campanha de massa contra a obesidade? Um terço das crianças está com
sobrepeso e obesidade. O Estadão divulgou um levantamento das mortes diretas
provocadas pelo excesso de peso. Ainda tem as indiretas. Nos EUA, o killing the
most é a obesidade, e a gente está seguindo por esse caminho. O governo
ganharia se fizesse uma campanha muito forte de prevenção.
Que não está acontecendo.
Não estou vendo. Acho que é uma questão política. A indústria alimentícia é
muito competente na sua distribuição de produtos. Em qualquer cidadezinha, no
interior do interior, você encontra todos os produtos industrializados, mas não
necessariamente os frescos. Além disso, ela é muito competente em deixar aquele
produto barato. E, na composição, a mistura de sal, açúcar e gordura é
ultrapalatável. Faz com que o consumidor goste daquilo e fique aprisionado pela
língua. Quando o governo faz campanha pró-aleitamento materno, o resultado é
incrível. Portanto, ele precisa dizer: alimente-se bem. Tem que ensinar às
pessoas o que comer e o que evitar em excesso. Sabemos que, onde tem água
parada, pode ter o mosquito da dengue. No entanto, o governo dá prêmio de
parceiro da saúde para uma rede de fast-food e o ministro da Saúde surge no
carnaval dentro do camarote de uma empresa de refrigerante.
De quem foi a ideia de
mostrar, em potes, quanto tem de açúcar dentro de um refrigerante e quanto tem
de óleo num pacote de salgadinho? Foi minha. Você tem um pacote com 150 g de
salgadinho. No rótulo está escrito: em cada 20 g, há tanto de óleo. O pai
enxerga mal o que está escrito, a criança não vai comer 20 g e sim o pacote inteiro,
e é preciso fazer uma regra de três no supermercado. Pensei: qual a forma mais
transparente de mostrar o que as pessoas estão ingerindo? Eu me baseei em
pesquisas muito sérias sobre os alimentos que as crianças mais ingerem: os
achocolatados, ossalgadinhos, os sucos de néctar. Eles não estão ali de forma
aleatória.
As embalagens e os rótulos
dos produtos alimentícios deveriam ser mudados? Quando comecei a editar o
filme, tive de fazer um recorte grande de conteúdo. Havia temas tão avançados
em obesidade que eu pensei vão achar que estou viajando . Um exemplo: hoje em
dia você vê no verso de um maço de cigarro um pé apodrecendo, uma pessoa com
câncer. Nos EUA, onde a discussão sobre a obesidade está muito na frente, já se
fala em colocar alertas desse tipo nas embalagens dos alimentos. Querem que a
gente veja um rótulo e perceba, de fato, o que tem dentro daquele produto e as
consequências da sua ingestão em excesso. Eu achava que, se trouxesse essa
discussão para cá, num filme assistido especialmente por brasileiros, as
pessoas não iam entender.
Seria demais para aquele
momento? Sim, a discussão sobre obesidade no Brasil era muito grande entre
médicos e educadores, mas não entre a população. Acho que as pessoas que estão
buscando alimentos mais saudáveis, orgânicos, são as que estão pensando sobre
esse conteúdo há muito tempo, vivenciaram alguma experiência dolorosa,
receberam referências fortes de outros grupos. Para elas, o que deixei fora do
filme talvez funcionasse.
De qualquer forma, um
rótulo com imagens chocantes é controverso. Alguns dizem que pode ter efeito
contrário no consumidor.
Como é a autoimagem da
criança obesa? Uma terapeuta especializada em crianças, a Clarissa Ollitta, diz
o seguinte: Ou as crianças obesas se sentem monstruosas ou elas se sentem
invisíveis . Vale lembrar que, em cada cinco crianças obesas, quatro serão
obesas quando adultas. Mas, ainda que uma delas vire uma adulta magra, talvez
nunca se recupere dessa infância. A LouiseBourgeois, artista plástica, já
falava que a infância nunca perdeu sua mágica, seu encantamento e seu drama . A
infância já é dramática por si só. Você tem de ser aceita, tem de ser gostada.
Precisamos dar mais um obstáculo pra ela?
Falando em drama, a
criança pode passar a comer compulsivamente por causa de um trauma o divórcio
dos pais, por exemplo. Há um caso assim no filme. Sim, mas proporcionalmente
falamos mais de crianças que chegaram ao sobrepeso e à obesidade quase sem perceber.
Isso aconteceu por causa da transição do alimento natural para o
industrializado. Elas ficaram viciadas nesse tipo de alimento, não fazem
refeição com a família, não sabem diferenciar um abacate de um rabanete, um
melão de uma manga. Eu achava que isso acontecia mais no ambiente urbano. O
choque foi perceber essa desinformação no Brasil inteiro.
O que acha dos programas
de TV em que adultos com sobrepeso competem para ver quem emagrece mais? Esses
programas focam muito no indivíduo. Aquela pessoa tem de perder peso porque
está assim por culpa dela. Primeiro, há uma linha genética. Os pais são
gordinhos, daí que muitas crianças são geneticamente propensas a ser gordinhas
também. A OMS tem um dado de porcentagem aceitável de obesos. Mas essas
competições televisivas são perigosas porque não focam no que deixou metade da
população com sobrepeso ou obesidade. Estamos falando de um ambiente
obesogênico, não de um indivíduo que quis ficar assim. E é difícil falar disso
porque, se ele é um adulto, ele é responsável por suas escolhas. Mas, se foi
uma criança obesa, suas células têm memória. O tratamento é muito complicado
porque as pessoas não são uma boca. Como se trata o alcoólatra? Basta dizer não
beba ? Não. Você oferece terapia, você dá remédio, dá carinho, dá conforto. Com
uma criança e mesmo com umadulto obeso é a mesma coisa. Não pode falar não coma
.
Você morou sete anos nos
EUA e acompanhou a campanha do governo contra a obesidade. Que percepções
trouxe de lá? Quando a Michelle Obama abraçou a causa com o Let s Move, todo
mundo começou a falar mais de obesidade, inclusive no Brasil. Michelle
enfrentou muita dificuldade por causa da força das marcas, das corporações.
Tanto que começou falando sobre composição de produto e hoje trata mais de
atividade física. É uma mulher corajosa. Sendo mãe, imagino como deve sofrer ao
ver as crianças americanas obesas. Agora, é um modelo de vida que não valoriza
a alimentação natural. Um amigo morou três meses nos EUA e contratou uma pessoa
para ajudar na casa. No terceiro dia essa ajudante falou: Vou ter de cobrar o
dobro, eu não sabia que vocês iam usar a cozinha . As pessoas não usam o fogão
lá.
E no Brasil é muito
diferente? Vejo algumas pessoas cozinhando em casa, outras saindo para comer
especialmente comida caseira. Mas o que a gente mais percebe são os
restaurantes lotados, com TV em todos eles. Pensando nessas sociedades de
consumo, eu queria fazer um paralelo. Quando a gente fez Criança, a Alma do
Negócio, observei a quantidade de lixo de plástico que as crianças tinham em
casa. Falo de brinquedos que os pais compraram, as crianças brincaram uma vez e
abandonaram em seguida. Isso acontecia tanto com crianças de comunidades
carentes quanto com crianças de classe AA. Eu acho que o estímulo à compra e a
obesidade infantil estão intimamente ligados. A criança não só está acumulando
na sua casa como está acumulando no corpo. São calorias vazias. Ela quer
preencher um vácuo que o alimento não vai preencher. Isso só vai acontecer
através de um amigo, do afeto, da convivência. Por isso a questão é tão maior.
Não e só o sentido do alimento, é o sentido da vida.
Fonte: O Estado de S.
Paulo
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