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"A fome é um crime hediondo e grave pecado", afirma Dom Mauro Morelli


21 de maio de 2013

Do IHU Online

“Com o Papa Francisco, é possível que se revertam as opções predominantes na vida eclesial nas últimas décadas. Num mundo torturado pela fome, a maré ‘não está pra peixe’. Quem tem ouvidos, ouça!”, declara bispo emérito da Diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti.
“De 32 milhões de brasileiros, ainda subsistem 16 milhões em estado de insegurança alimentar e nutricional; mas a presunção nos leva a acreditar que em menos de duas décadas resolvemos uma calamidade que perdura desde 1500”, afirma Dom Mauro Morelli, bispo emérito da Diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti, que há anos dedica-se a solucionar os problemas da fome e da miséria no Brasil.
Um dos críticos do Programa Fome Zero, no governo Lula, Morelli afirma que “a visão triunfalista impede dizer que não fizemos o mais importante. Patinamos em medidas assistenciais, exigência do direito lesado, negado ou periclitante, mas que, por natureza, não se destinam a equacionar problemas estruturais”.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele assinala que o mapa da fome cobre “toda a superfície do planeta e não será resolvido pela economia de mercado”. Cita como exemplo a proposta da Cúpula da Alimentação, convocada pela ONU, a qual tinha o objetivo de reduzir pela metade o número de famintos no mundo até 2015.
“Tudo o que foi feito não atinge o objetivo proposto, ou seja, quatrocentos milhões, uma vez que estamos chegando a 2015 com mais de 1 bilhão de seres humanos sofrendo os horrores da fome não atendida”, lamenta.
Mauro Morelli foi o fundador do Instituto Harpia Harpyia e um dos fundadores do Movimento pela Ética na Política. Fortaleceu a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Esteve à frente da criação do conceito de segurança alimentar como combate à fome e foi um dos articuladores do programa Mutirão de Combate à Desnutrição Materno-Infantil.
Foi membro do Comitê Permanente de Nutrição da ONU, e atualmente é presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável de Minas Gerais – CONSEA/MG.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A partir do trabalho que desenvolveu de combate à miséria e à fome, como avalia essa questão no país? Considerando o tempo que o senhor atua a favor dessa causa, que balanço faz da questão?
A fome em si é coisa boa. Um sintoma ou alerta emitido pelo cérebro para chamar atenção para a necessidade de alimentar e nutrir o organismo, pois a vida é um processo permanente de alimentação. Alimento é Vida.
Problema sério é ser privado do direito ao acesso e gozo do alimento. Mais do que um problema, trata-se de ser vítima de crime hediondo e grave pecado. A questão não é acabar com a fome, mas garantir acesso e gozo ao alimento que sacia e nutre.
A Força da Vida vem da luz, do oxigênio, da água, das carícias da brisa e da ternura do amor. Leite materno, arroz e feijão, legumes e frutas, peixes e carnes são indispensáveis nas etapas de nosso desenvolvimento e formação.
Alimentação saudável, adequada e solidária é imprescindível desde a gestação até o encerramento do ciclo histórico de nossa existência. Em nosso DNA estão registradas certezas e angústias da importância prioritária do alimento e da nutrição na história da humanidade.
As civilizações e a rica diversidade cultural entre os povos atestam a centralidade do alimento e da nutrição para a realização das pessoas, das famílias e nações. Alimento e nutrição são exigências inegociáveis da nossa vida no planeta, portanto direito humano básico e determinante para tudo o mais.
A garantia do alimento fundamenta a própria paz. Alimentar o corpo, a alma e o espírito é questão de cidadania planetária e razão primeira do progresso e do desenvolvimento.
IHU On-Line – Como se constitui hoje o mapa da fome no Brasil? Em que regiões do país a fome ainda continua sendo um problema central?
O Mapa da Fome cobre toda a superfície do planeta e não será resolvido pela economia de mercado; ao contrário, ele é cada vez mais agravado pela degradação ambiental e exclusão social, pela instabilidade do emprego e migração forçada a que famílias e povos estão submetidos, submissão que se dá por um modelo de desenvolvimento que suga as riquezas da terra e as energias de quem trabalha e, ao mesmo tempo, que cultiva o desperdício e concentra bens e riquezas.
Em 1996, em Roma, a Cúpula da Alimentação, convocada pela ONU, marcou data e definiu compromisso para o enfrentamento do problema da fome no mundo. “Tudo faremos para reduzir pela metade o número de famintos no mundo até 2015”.
Em verdade tudo o que foi feito não atinge o objetivo proposto, ou seja, quatrocentos milhões, uma vez que estamos chegando a 2015 com mais de 1 bilhão de seres humanos sofrendo os horrores da fome não atendida. É impossível sonhar com a paz enquanto uma só criança definhar e morrer de fome (Isaías, 65).
Entre nós, muito foi feito; de 32 milhões de seres humanos, ainda subsistem 16 milhões em estado de insegurança alimentar e nutricional. Mas a presunção nos leva a acreditar que em menos de duas décadas resolveremos uma calamidade que perdura desde 1500.
Mais grave ainda é a visão triunfalista que impede dizer que não fizemos o mais importante. Patinamos em medidas assistenciais, exigência do direito lesado, negado ou periclitante, mas que, por natureza, não se destinam a equacionar problemas estruturais.
A obesidade em números alarmantes é a outra face da realidade nutricional resultante do assistencialismo com suas migalhas e da falta de educação alimentar e nutricional que nos motive a comer e beber como opção pela vida. Não nos esqueçamos, além do mais, que “o veneno está à mesa”, dada a qualidade dos alimentos produzidos e comercializados visando o lucro.
Deve ser atribuído a Josué de Castro o mérito de termos atingido elevado grau de consciência sobre as causas e males da fome. Por seu testemunho e obra, pode ser denominado e honrado como o grande Profeta da Vida no século XX. Nos mangues do Capibaribe, e não na Sorbonne, ele entendeu a fome.
“Um dos fatores mais constantes, o desequilíbrio econômico, com as desigualdades sociais que dele nascem”. “A fome sempre existiu perto da riqueza e da abundância. O que é novo no mundo é a consciência que os povos famintos têm da realidade social e da sua condição e a impaciência que experimentam para se libertar da fome e de suas misérias”.
Na obra Geopolítica da Fome (1946), afirma com indignação: “Nenhuma calamidade é capaz de desagregar tão profundamente e num sentido tão nocivo a personalidade humana como a fome”.
IHU On-Line – Em que consiste uma política pública comprometida em acabar com a fome no mundo?
Na Carta Encíclica Caridade na Verdade (n. 27), Bento XVI louva a “quem se consagra a trabalhar para erradicação da miséria e dos males da fome, pois contribui para a preservação do planeta e a paz mundial”.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, em sua 40ª Assembleia Geral (2002), assumiu o compromisso de promover um Mutirão Nacional à luz de “Exigências Evangélicas e Éticas para a Superação da Miséria e da Fome” (Doc. 69).
Observo que, no número 66, não deixa dúvida que “um dos primeiros sinais de efetiva evangelização, no início deste milênio, será a eliminação da fome decorrente da miséria, em nosso país”. No número 65 recomendava acompanhar a continuidade da Cúpula Mundial da Alimentação!
Com o Papa Francisco é possível que se revertam as opções predominantes na vida eclesial nas últimas décadas. Num mundo torturado pela fome, a maré “não está prá peixe”. Quem tem ouvidos, ouça!
Cabe à família, à sociedade com todas suas instituições, e aos governos, em todos os níveis e áreas de abrangência, zelar, promover e garantir o acesso e gozo do alimento e da nutrição a cada criança que nasce neste planeta. Devemos combater a concentração de riqueza e sua filha primogênita, a miséria.
Integrados na cadeia alimentar, que constitui a riqueza e a originalidade do planeta em que fomos dados à luz, cabe-nos zelar e cuidar das fontes da vida e de sua sociobiodiversidade.
É tarefa urgente fazer surgir e/ou fortalecer sociedades democráticas que garantam e promovam o bem comum e direito humano básico, assegurando a cada um o acesso ao alimento e à nutrição para uma vida saudável e participativa.
Além disso, é tarefa urgente promover o desenvolvimento local, integrado e sustentável que defenda, preserve, recupere e conserve o meio ambiente para a atual e para as futuras gerações.
Pode ser um bom começo planejar o desenvolvimento de baixo para cima, em cada microbacia, à luz do binômio indissolúvel Educação e Nutrição, para atingir os objetivos da Lei n. 11.947, com novas disposições sobre alimentação escolar.

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