Mídia induz obesidade infantil
Por Lilia Diniz
A obesidade infantil é apontada pela Organização
Mundial da Saúde (OMS) como um dos mais graves problemas de saúde pública. No
Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
um terço das crianças de 5 a 9 anos está com peso acima do recomendado. Nos
últimos 20 anos, os casos de obesidade nessa faixa etária quadruplicaram. O
Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (24/7) pela TV Brasil
discutiu o papel da publicidade no aumento do peso das crianças.
A polêmica em torno da propaganda de alimentos
para o público infantil afeta até a comunidade científica. Uma mesa de debates
que seria realizada no Congresso Mundial de Ciência e Tecnologia sobre o papel
da mídia na obesidade infantil foi cancelada para não afugentar possíveis
patrocinadores. O encontro será realizado em agosto, no Brasil. A Sociedade
Brasileira de Ciência e Tecnologia de Alimentos (Sbcta) havia proposto a
discussão por considerar o sobrepeso das crianças um tema urgente.
Em 2010, a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) baixou uma resolução com novas regras para a publicidade de
alimentos. A medida previa que ao final das propagandas de produtos com
elevadas quantidades de açúcar, sódio e gorduras saturada ou trans, deveria ser
emitido um alerta sobre os riscos desses produtos para a saúde. O texto
levantou polêmica e foi suspenso três meses depois pela Justiça Federal. O
pedido de suspensão foi feito pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação
Publicitária (Conar) e pela Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação
(Abia).
Entre os fatores apontados para a obesidade
infantil estão o pouco tempo dedicado às atividades físicas e o consumo
excessivo de alimentos industrializados. Se o quadro não for revertido, as
próximas gerações correrão um risco maior de desenvolver hipertensão, diabetes,
problemas cardiovasculares, renais e cerebrais. Apenas uma ação conjunta entre
Estado, família, indústria e agências de publicidade pode mudar o panorama.
Para discutir esse tema, Alberto Dines recebeu no
estúdio do Rio de Janeiro o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão e o
engenheiro de alimentos Luiz Eduardo de Carvalho, um dos convidados do debate
cancelado do Congresso Mundial de Ciência e Tecnologia. Médico sanitarista,
Temporão é formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Foi secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde e
diretor do Instituto Nacional do Câncer (Inca). Carvalho é professor da UFRJ,
foi presidente da Sociedade Brasileira de Ciência e Tecnologia de Alimentos
(Sbcta) e da Associação Latinoamericana e do Caribe de C&T de Alimentos
(Alaccta).Em São Paulo, o programa contou com a presença de Ekaterine
Karageorgiardis, advogada do Instituto Alana, organização sem fins lucrativos
de proteção à criança que desenvolve atividades voltadas para a área de
consumo.
Antes do debate ao vivo, em editorial, o
jornalista Alberto Dines questionou: “Quando o Estado defende o bem-estar e a
saúde do cidadão, isso significa que o Estado está tutelando a sociedade? Será
que os ideólogos do mercado não conseguem distinguir a diferença entre defender
e tutelar?” Dines sublinhou que a questão ganha destaque quando as autoridades
tentam coibir situações abusivas; relembrou as ações da Anvisa sobre a
publicidade de remédios e a recente interferência da Anatel no mercado de
telefonia móvel. “A mídia fez cara feia novamente, esquecida de que também é
responsável por anunciar produtos e serviços sem investigar a capacidade das
empresas em atender as promessas da publicidade”, afirmou.
A reportagem exibida antes do debate entrevistou
especialistas no assunto. A coordenadora de Alimentação e Nutrição do
Ministério da Saúde, Patrícia Jayme, destacou que é importante que os pais
entendam o grande risco que as crianças de hoje têm de desenvolver obesidade.
Entre os fatores apontados por ela estão o estilo de vida, o padrão dos
alimentos disponíveis para consumo e a exposição ao marketing desses alimentos.
Patrícia Jayme ressaltou que a escola deve ser um ambiente de promoção da
alimentação saudável e da prática de atividades físicas.
A presidente Conselho Regional de Nutrição
(RJ/ES), Kátia Cardoso, avaliou a mudança na alimentação infantil: “As crianças
vêm apresentando doenças que não eram apresentadas há algum tempo. As pesquisas
vêm apontando essa mudança no contexto do sistema alimentar há uns dez anos”,
disse. Neyza Porchet, psicanalista especializada em crianças, afirmou que o
peso da publicidade é imenso na vida contemporânea. “As crianças têm uma
peculiaridade. Para a criança, o real e o imaginário, a fantasia e o fato,
não têm limites tão definidos quanto para nós. Então, elas não têm uma
consciência tão clara que aquilo ali é um comercial, que o que está aparecendo
é uma fantasia”, disse.
Na visão do publicitário Armando Strozenberg,
atribuiu-se à propaganda um enorme poder que não corresponde totalmente à
verdade. “A publicidade tem o seu papel influenciador, mas ela não é tão
importante quanto as pessoas acham. Nós hoje temos a sensação de que a
publicidade está sofrendo bullying de vários setores e isso é muito negativo
porque acaba criando um estigma para a publicidade, não observando os
verdadeiros problemas. A publicidade transmite uma informação de um ponto para
outro, mas nós não podemos ser responsabilizados por eventuais problemas que
algum produto tenha em algum momento”, argumentou.
Armando Strozenberg pontuou que houve avanços nos
últimos anos a partir da atuação do Conar. “Os próprios anunciantes fizeram
esforços enormes nesses últimos anos para que a publicidade deixasse de falar
diretamente com as crianças. A publicidade não se dirige mais à criança. Os
nossos horários também foram rigidamente mudados, especialmente na comunicação
de massa. Os publicitários também são pais, tios, são avós; nós não somos
demônios que queremos usar o nosso trabalho a serviço de alguma coisa que seja
altamente negativa para a sociedade, particularmente para as crianças”,
afirmou.
O promotor público João Lopes Júnior ressaltou
que a restrição da publicidade de alimentos para as crianças não só é
legalmente possível como também é necessária: “Ela pode significar um dever do
Estado. A Constituição brasileira exige que o Estado adote políticas públicas
preventivas na área de saúde. Se hoje nós temos uma epidemia de obesidade no
mundo inteiro e se essa epidemia é causada pelo consumo excessivo de
determinados alimentos, e se a publicidade estimula – sobretudo para crianças –
esse consumo excessivo, evidentemente essa restrição se mostra necessária no
contexto de uma saúde pública para promoção da saúde da criança”.
O promotor destacou que o corporativismo de
órgãos de autorregulação pode impedir a punição a abusos. “Haverá sempre
situações em que o corporativismo pode impedir um controle de determinados
abusos. O publicitário vai estar julgando o seu par muitas vezes por uma
publicidade, por uma peça, por uma abusividade que ele já cometeu no passado e
que pode vir a cometer no futuro. Então, ele não tem essa imparcialidade
necessária”, ponderou.
No debate ao vivo, Luiz Eduardo de Carvalho
explicou que, historicamente, os alimentos não eram tão gostosos. A engenharia
alimentar identificou em cada alimento original as características mais atrativas
– como sabor, textura, cor e odor – e construiu a partir deles “artefatos
comestíveis” ainda mais saborosos. Na sua avaliação, um congresso de engenharia
de alimentos não poderia deixar de discutir a sua contribuição na construção
desses artefatos.
Carvalho enfatizou que o debate cancelado não
contaria com a presença de “ongueiros” ou ativistas. Apenas a comunidade
científica, órgãos governamentais e o setor publicitário participariam das
discussões. “O veto não foi às pessoas. O veto foi ao tema”, lamentou o
especialista. O professor explicou que o objetivo do encontro era discutir como
a engenharia de alimentos vem construindo artefatos que rompem as defesas que o
organismo humano tem para não comer além da conta. Não só as propagandas
conseguem alterar o controle biológico: as características modificadas nos
alimentos também têm este poder.
Dines acrescentou que a indústria de alimentos
precisa sobreviver e gerar empregos e questionou como ela pode cumprir esses
objetivos sem afetar a saúde pública. Carvalho explicou que os alimentos
industrializados precisam ser baratos e de fácil manuseio. Só é possível um
baixo custo se o produto tiver altas taxas de gordura e açúcar. Toda uma
cultura em torno do alimento é construída pela indústria. “Quando você procurar
um lápis cor de laranja ele vai ter a cor do ‘refrigerante cor de laranja’”,
exemplificou o professor. De acordo com ele, há um conjunto de símbolos que
estão sendo agregados aos alimentos.
Ao longo de décadas, fatores políticos, sociais e
econômicos levaram ao aumento da obesidade infanto-juvenil no Brasil. O
ex-ministro José Gomes Temporão citou alguns dos principais fatores que
provocaram esse quadro. Um deles é a mudança na dinâmica familiar, que fez com
que as pessoas comam fora de casa com uma maior frequência ou que comprem
refeições industrializadas prontas em supermercados. Esses produtos, na visão
do ex-ministro, são um “coquetel molotov em termos de sal, gordura e açúcar”.
Outros fatores são a entrada da mulher no mercado
de trabalho e o aumento da violência, que fez com que as crianças deixassem de
brincar nas ruas. Na avaliação de Temporão, é preciso que o consumidor detenha
todas as informações acerca do produto que vai consumir para que possa exercer
plenamente os seus direitos.
Será que a publicidade, ao colocar um produto de
maneira inteligente, sedutora, inovadora, mostra o outro lado? O que tem ali
dentro que, se consumido abusivamente, pode fazer mal para a saúde? Não. Para
uma criança, então... Quero lembrar o que para mim é o exemplo mais mórbido:
‘Danoninho vale por um bifinho’. O que isso causou de problemas na saúde
pública não está no gibi”, criticou o ex-ministro. Ele ainda afirmou que a
sociedade vive paradoxos. De um lado, há uma gigantesca máquina voltada para o
consumo e, de outro, um forte mercado de dietas mágicas, livros de autoajuda,
academias de ginástica. “Ao mesmo tempo em que a propaganda diz ‘coma um pouco
mais disso’, diz ‘você tem que ser magrinho’”, lembrou Temporão.
O ex-ministro criticou a postura rígida do Conar
quanto à regulação do Estado na publicidade. Para ele, o argumento de que a
atuação do Estado interferiria no direito de escolha do cidadão não é válido
porque a publicidade constrói uma pedagogia perversa ao esconder a essência do
que vende. “Inevitavelmente, o Estado tem que entrar como regulador desta
questão. É uma discussão coerente discutir os limites dessa regulação, eu
concordo. Mas que deve haver regulação e essa regulação deve ser discutida por
toda a sociedade, eu creio que sim”, afirmou.
Ekaterine Karageorgiardis explicou que o
Instituto Alana recebe denúncias sobre propagandas inadequadas para as crianças
e as encaminha aos órgãos competentes. “A gente tenta dialogar com a sociedade
de uma forma ampla, o que envolve as famílias, as empresas e o poder público.
Partimos do pressuposto de que a nossa legislação, a Constituição, o Estatuto
da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor e outras tantas
leis defendem a criança de forma integral e absoluta”, explicou Ekaterine.
Além da publicidade na TV, outras estratégias de
venda também afetam as crianças, como as embalagens, a colocação dos produtos
nos pontos de venda e a distribuição de brindes infantis colecionáveis junto
com refeições. A advogada do Instituto Alana ressaltou que o entretenimento
mesclado com consumo de alimentos é extremamente prejudicial e pode comprometer
a saúde no futuro. “A abusividade e a ilegalidade de se direcionar uma
publicidade à criança é porque se sabe que ela é ingênua e que ela vai replicar
essa informação, transmitindo-a para o responsável, e vai ser uma promotora de
vendas. A criança fica em casa assistindo à TV ou jogando joguinhos de
computador, que são repletos de anúncios de alimentos”, disse Ekaterine.
Fonte: Observatório da Imprensa
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