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A Agroecologia e a valorização da Agrobiodiversidade


            De forma simplificada, conforme as considerações teóricas formuladas tanto por Davis & Golberg (1957) quanto por Malassis (1973), o sistema agroalimentar é entendido como a soma total de operações de disponibilização de insumos, de produção nas unidades agrícolas, de armazenamento, transformação e distribuição de alimentos (Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v. 21, n. 1, p. 169-195, jan./abr. 2004). Lembrando que as relações entre essas diversas operações, assim como as diferentes realidades socioambientais são de suma importância nas discussões sobre os sistemas agroalimentares.
            Na definição de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável da II Conferência Nacional de SAN realizada em Olinda-2004, e do conceito de Soberania Alimentar utilizado no Fórum Mundial sobre Soberania Alimentar realizado em Havana, Cuba-2001, várias questões estão diretamente relacionadas com os Sistemas Agroalimentares, como a produção de alimentos de qualidade a partir de práticas alimentares promotoras de saúde, estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos, com respeito a cultura e a diversidade dos povos. Isso aponta a importância de pensarmos os sistemas agroalimentares como uma cadeia, em que todos os elos estão inter-relacionados.
            Principalmente a partir de meados do século XX, a produção agrícola adquire um ritmo acelerado de intensificação chamada de “Revolução Verde”. Os produtos agropecuários passam a ser cada vez mais transformados e dependentes da indústria e de seus insumos, de forma a aproveitar a estrutura industrial antes utilizada para as Guerras. Nesse sentido, as práticas agropecuárias tornaram-se cada vez mais consumidoras de insumos agrícolas desenvolvidos para as realidades da América do Norte e Europa, locais onde se iniciou o processo de industrialização. Para esse conjunto deu-se o nome de “pacotes tecnológicos”, que inclui a aração das terras, uso intensivo de insumos (adubos químicos, agrotóxicos e sementes produzidas em laboratório como as híbridas e mais recentemente as transgênicas), o uso de maquinários pesados que destroem a estrutura dos solos, o consumo cada vez maior de combustível fóssil – petróleo, a exploração da mão de obra e dos recursos naturais, entre outras.
Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária-ANVISA, o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos/venenos do planeta pelo segundo ano consecutivo (2009 e 2010), e pelos dados de 2011, seremos os campeões por mais um ano. Esses dados não consideram os volumes de agrotóxicos contrabandeados. Esse modelo de produção altamente dependente de insumos químicos externos às propriedades vai contra a Soberania e a Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável, além de não promover a Saúde Pública da população urbana e rural, já que, segundo a ANVISA, as consequências da ingestão de agrotóxicos além do “permitido” [1] poderão causar diversos sintomas, inclusive o câncer, naquelas pessoas que tiverem uma exposição maior aos venenos. Para piorar, os sintomas são pouco específicos, não sendo possível determinar a causa baseado apenas na avaliação clínica. Sabe-se ainda que o número de registros é muito menor que o número real de intoxicações – a própria Organização Mundial da Saúde-OMS, segundo a ANVISA, reconhece que, para cada caso registrado de intoxicação por agrotóxicos, há 50 não notificados.
            Uma das formas de justificar toda essa mudança no modelo produtivo foi a necessidade de aumentar a produção de alimentos, pois, segundo Malthus (1798), a produção agrícola aumentava em um ritmo menor do que o aumento da população, ou seja, em pouco tempo teríamos uma superpopulação para poucos alimentos, o que até hoje não aconteceu. Esta interpretação de Malthus é uma das explicações que mais perduram sobre a questão alimentar (ABRAMOVAY, 1983). Como exemplo, em 2010, para justificar as mudanças no Código Florestal Brasileiro que favorecem ainda mais a exploração excessiva dos recursos naturais ainda existentes, utilizou-se a Teoria de Malthus. Diversos autores como Marx e Engels contrapuseram essa Teoria, e mais recentemente Josué de Castro (2001) aponta que o problema da fome está longe de residir na capacidade produtiva da agricultura e, sim, no atraso institucional e na desigualdade que rege as estruturas sociais dos países.
            Paralelamente ao crescimento acelerado da produção agrícola, o fluxo do comércio foi intensificado em todas as escalas geográficas e as fronteiras deixaram de restringir o fluxo de mercadorias. O mercado das commodities agrícolas globais (soja, milho, trigo, café, açúcar, cacau, algodão,..) principalmente voltadas para o consumo animal nos países desenvolvidos e para o mercado financeiro, passaram a ter mais importância do que a produção de alimentos para consumo humano, e consequentemente o aumento do apoio ao agronegócio em comparação com a  Agricultura Familiar. De acordo com o Censo Agropecuário 2006[2], que comparou a agricultura familiar e a não familiar, são os/as agricultores/as familiares que fornecem alimentos básicos para a população brasileira, ocupando mais pessoas por unidade de área, gerando um valor bruto da produção (R$/ha/ano) maior, possuindo maior número de estabelecimentos (em Minas Gerais são 79% dos estabelecimentos), no entanto, ocupando menor área total. Mesmo com todas as vantagens da Agricultura Familiar, a Terra ainda concentra-se nas mãos de poucos, tornando-se urgente a divisão e a regularização de terras urbanas e rurais.
            A partir das décadas de 70 e 80 com o declínio do período militar, há uma rearticulação dos movimentos sociais e das lutas nas diversas áreas da sociedade. É nesse período que se inicia o surgimento de diversos movimentos sociais e de entidades de apoio e de representação dos/as trabalhadores/as. Em relação à agropecuária e meio ambiente, surge a chamada Agricultura Alternativa, como o próprio nome diz, uma “alternativa” à agricultura altamente dependente de insumos externos à propriedade e impactante no que se refere aos recursos naturais e à saúde do planeta. No final do século XX, essa agricultura chamada de “alternativa” e praticada pelos “bichos grilo”, torna-se uma ciência chamada Agroecologia, estudada e praticada por agricultores/as e pesquisadores/as. São várias as escolas do ramo da Agroecologia, entre elas a Agricultura Orgânica, a Biológica, a Natural, a Biodinâmica, a Permacultura, a Agroflorestal entre outras[3]. Para o constante aperfeiçoamento dessa ciência, é preciso considerar alguns princípios: aliar o saber acadêmico com os conhecimentos tradicionais/camponeses/indígenas; ter uma perspectiva participativa, de troca de saberes e de construção conjunta; experimentar e gerar tecnologias de forma participativa (o agricultor também é pesquisador) in loco ao invés de importar soluções externas; dar ênfase às especificidades dos agroecossistemas e das comunidades/famílias que os gerem; aproximação dos agroecossistemas aos ecossistemas naturais; e práticas de convivência e atividades, cultivos e animais adaptados às diferentes culturas e realidades, como as sementes crioulas/tradicionais.
            Em 08 de março de 2011 o Alto-Comissariado de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou um relatório, embasado por “uma exaustiva revisão da literatura científica mais recente”, que defende a agroecologia como “meio para incrementar a produção alimentar e melhorar a situação dos mais pobres”. “Pequenos agricultores podem dobrar a produção de alimentos dentro de 10 anos em regiões críticas usando métodos ecológicos. Com base em uma revisão extensiva da literatura científica recente, o estudo conclama por uma mudança fundamental em direção a agroecologia como um caminho para aumentar e em muito a produção de alimentos e melhorar a situação dos mais pobres.” E ainda, “...requer políticas públicas para apoiar pesquisas agrícolas e serviços de extensão participativos...Companhias privadas não vão investir (...) em práticas que não podem ser premiadas com patentes (como os transgênicos) e as quais não vão abrir mercado para produtos químicos e sementes melhoradas (…). A solução (contra a fome e mudanças climáticas) está em apoiar o conhecimento e experimentação dos pequenos agricultores e aumentar a renda destes (…)”.Nesse sentido, fica claro que a Agroecologia/Agricultura Orgânica praticada pela Agricultura Familiar é uma solução para a produção de alimentos utilizando-se de métodos ecológicos, ou seja, que causam menos impactos tanto no ambiente como na população.
Nacionalmente, em 2011, o Governo Federal elaborou um Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, que de forma geral, engloba as estratégias, ações e projetos que os diferentes ministérios já vêm executando. Para 2012, o Governo Federal já está organizando um grande processo participativo, a partir de Oficinas Regionais, para elaborar a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, envolvendo sociedade civil e instituições públicas estaduais e federais. A expectativa é lançar essa Política durante a Rio +20 em junho de 2012.
No Estado de Minas Gerais, a partir da criação da Subsecretaria de Agricultura Familiar-SAF e da Superintendência de Agricultura Familiar-SUAF pela Lei delegada 180/2011, estruturou-se na SUAF uma Coordenadoria de apoio a Transição Agroecológica. A iniciativa deve-se ao fato de que é necessário avançarmos na estruturação de um modelo tecnológico adequado à realidade dos diversos agroecossistemas, de modo a causar menos impactos ao meio ambiente, como acontece, por exemplo, com o uso indiscriminado de agrotóxicos.
Durante o I Seminário Estadual da Agricultura Familiar de MG realizado no final de agosto de 2011 pela SAF, organizações da sociedade civil e instituições governamentais, um dos temas debatidos foi a “Transição Agroecológica no processo de Desenvolvimento Rural Sustentável”. Durante os trabalhos de grupo, alguns problemas foram levantados:
- a falta de Formação Agroecológica adequada tanto para agricultores/as como para técnicos/as.
- divulgação ainda tímida da agricultura agroecológica.
- falta de políticas públicas consistentes e articuladas no desenvolvimento da produção em bases ecológicas.
- e a pouca pesquisa articulada com a extensão em tecnologias voltadas para a agricultura familiar agroecológica.
Nesse sentido, uma das prioridades da SAF apontadas pelo Subsecretário de Agricultura Familiar Edmar Gadelha durante o Seminário de agosto, é promover a discussão em torno da construção de um Programa Estadual de Transição Agroecológica para Minas Gerais, que já se inicia em dezembro de 2011 com uma primeira reunião de representantes de instituições governamentais de ensino, pesquisa e extensão que já atuam com o tema.

MALASSIS, L. Économie agro-alimentaire: economie de la consommation et de
la production agro-alimentaire. Paris: Cujas, 1973. t. 1.
DAVIS, J. H.; GOLDBERG, R. A. A concept of agribusiness. Boston: Division of
Research. Graduate School of Business, Administration. Harvard University, 1957.
136 p.
ABRAMOVAY, Ricardo. O que é fome. São Paulo: Brasiliense, 1983.
CASTRO, Josué de. Geografia da Fome. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 318p
SPECHT, S; RÜCKERT, A. A, Sistema Agroalimentar Local: uma abordagem para análise da produção de morangos no Vale do Caí-RS. PGDR – UFRGS, Rio Branco-Acre:XLVI Congresso da Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural, 2008.
Censo Agropecuário 2006.
SOUZA, Jacimar Luis de. Manual de horticultura orgânica. Viçosa, MG: Aprenda Fácil, 2006.
United Nations Human Rights, Relatório da Reunião da ONU de 08/03/2011 em Genebra: (http://www.ohchr.org/en/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=10819&LangID=E)
ALTIERI, M. A. Agroecologia: bases científicas para uma agricultura sustentável. Guaíba: Editora Agropecuária, 2002a. 592 p.
LONDRES, Flávia. Agrotóxicos no Brasil: um guía para ação em defesa da vida. – Rio de Janeiro: AS-PTA-Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa, 2011. 190 p.


[1] Ao autorizar o registro de agrotóxicos no Brasil, a ANVISA determina os limites máximos de resíduos (LMR) que poderão estar presentes nos alimentos. Estes limites são estabelecidos, principalmente, através da análise dos teores de resíduos que permanecem nas culturas após a aplicação do agrotóxico segundo as dosagens recomendadas pelo rótulo e bula. São levados em conta também os dados sobre a “ingestão diária aceitável” (IDA) dos produtos.
[2]    O conceito de agricultura familiar utilizado pelo Censo 2006 é o que consta na Lei nº 11.326, de 24/07/2006.
[3] Pela Lei Federal nº10.831, de 23 de dezembro de 2003, no Art. 1º, §2º, O conceito de sistema orgânico de produção agropecuária e industrial abrange os denominados: ecológico, biodinâmico, natural, regenerativo, biológico, agroecológicos, permacultura, e outros que atendam os princípios estabelecidos por esta Lei. No entanto, este não é um consenso entre pesquisadores/as, agricultores/as e técnicos/as, pois muitos consideram que a Agroecologia é mais abrangente que a Agricultura Orgânica, ou seja, a Agricultura Orgânica pode estar dentro da Agroecologia e não o contrário como consta na referida Lei.

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